Rasgavam as nuvens o dia inteiro, quando, naquele invólucro conquistado, um rádio falava sozinho como uma avó perdida nos círculos do tempo. Um quintal. Um menino no seu quintal. Quintal circundado e intransponível por todos os lados; ilhado, murado e cercado. Quintal insípido, inorgânico. Nem os gatos ariscos se arriscavam por lá. O menino mais sozinho de todos os quintais intransponíveis do universo – esta certeza pesava sobre os seus ombros miúdos.
Entrou em casa; um gole de café, duas mordidas de torrada e um beliscão na irmã. Saiu porta afora. Vida tonta esta de ir pro colégio. Rua após rua olhou as esquinas, examinou as baixadas e se esgueirou para achar uma ocupação qualquer. Nada. Chegou no colégio. Ninguém sorria ou oferecia a esperança de um dia feliz. Nem se deu ao trabalho de entrar. Foi lá na mercearia enfiar as mãos nos sacos de feijão e lentilha e sentir o tempo passar. No auge dos seus treze anos chegou a uma decisão: precisava se casar. Não haveria remédio melhor para a sua solidão. Uma menina singela, bem humorada para dar vida ao seu quintal.
Desceu as escadarias até a praia. Sabia da não-existência das sereias, mas fascinado por elas, procurou algo parecido. E então a viu. Uma menina no mar brincando de jacaré, disparando como seta em sua direção. Ele, admirador tímido, se surpreendeu quando de dentro de si saiu uma voz viril e confiante:
– Oi! Quer ir lá em casa brincar?
E como se a resposta afirmativa dela fosse a confirmação matrimonial de uma união perpétua, guiou sua esposa até o seu quintal.
– Que triste o seu quintal! Vamos trazer flores, bonecas, o mundo!
Nunca fora o quintal tão aprazível. Até avistou-se um gato, meio desconfiado, se equilibrando pela distância do muro para dali sumir no meio dos galhos da figueira do vizinho. O rádio também trocara do seu falatório para uma música diferente. E assim foram criando um novo reino ali, onde antes não havia nada, até que o sol começou a se despedir.
– Preciso ir. Minha mãe me deixa sem jantar se chego depois de escurecer.
Tornou-se o desquitado mais jovem de todos os desquitados do mundo. Viu sua ex-esposa, rainha e sereia atravessando as ruas para retornar ao seu próprio quintal onde certamente seus belos súditos a aguardavam. Pensou em ir ao boteco da esquina, onde ficavam todos os homens divorciados do bairro, mas ao invés disso caiu de cama com uma febre altíssima. E enquanto sua mãe batia no vizinho para pedir-lhe algumas folhas de pitanga para fazer um chá antipirético, viu da janela de seu quarto, na sombra do poste de rua, a imagem da sua menina.
– Amanhã eu volto.
Se foi por ironia do Destino ou um ato de crueldade involuntário do moço da companhia de luz, não se sabe ao certo. Mas o fato que se concretizou foi um apagão geral no quarteirão. Sua sereia sumiu e nunca mais foi vista. E o seu reino sucumbiu novamente ao tédio insosso de um quintal infeliz.
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