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    Especial FLIP 2008
    Com Carolina Lara e Jacqueline Lafloufa
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Do Descuido

E como se a memória de todas as brigas do mês passado, o término e o subseqüente retorno, jorrassem para fora de um compartimento bem selado do cérebro, me afoguei. Sem indicativos que me provassem o contrário, afundei naquele sofá; a ardósia cada vez mais assustadora. O batente da porta emoldurava convenientemente a existência que eu havia perdido, um casal fazendo bolo de chocolate com cobertura em uma noite morna de outubro. Por duas vezes chamei. Amor. Amor. Mas minha voz deve ter se dissipado na tormenta, sem nunca conseguir chegar até a cozinha. Tive nojo da vida.

Pelos Recôncavos

Hoje te tiraria daí, desse canto escuro, desse apartamento onde, quando o vizinho liga o aspirador, acaba a luz. Hoje te arrancaria daí, isolada entre vírgulas, circunscrita em um aposto. Tiraria todo o pó da sua superfície e te usaria de novo. Remendaria todos os cacos e farpas, nem que desse só para mais uma vez. Outras musas virão, ouvi de mim mesma em uma certa tarde de vento. Mas esses escritos no seu corpo, esses arranhões nos seus veios, toda a música cantada junta, meus dedos entre os seus fios – dedilhando tranquilamente. Passo os olhos nessa caixa onde você se esconde. Tenho medo de abrir – mamãe, na minha infância, me contou a história da Pandora.

Antanho

As cobertas grudadas ao corpo numa madrugada fria, restos da cama na lembrança da moça e o quarto cingido recendendo a páginas amareladas. Um copo de cólera no topo da estante. Há uma folha em branco. Não espero resposta. O que isso quer dizer? E o que escrevo agora com certeza não é desfecho. Sempre nas noites insones, quando a cabeça se deixa cavalgar e retorna àquele cheiro de cândida derramada, ao toque do violão à pele nua, aos cigarros virados com saliva intrusa. Me resigno detrás da tinta. Algumas palavras herméticas rascunhadas pronunciam mais do que um átrio de vidro.

A moça na janela e a mosca na vidraça. Ambas condenadas a colisões contínuas com a realidade tangencial.

Infância

Não puderam ser mais aquelas crianças sentadas no sofá. No fim dos dias percebeu-se que o grupo havia se desfeito, cada um para um lado; cada qual agarrando-se a qualquer fortaleza imaterial que despontasse num raio de alguns anos. Peixinhos perdidos em uma existência críptica. O mundo não se revelou como se esperava e o sofá foi virando uma coisa amorfa, moldado pelos cachorros sarnentos que passavam por lá, castigado pela chuva e dominado por um bolor verde. A casa da infância conquistada, a pequenez tomada violentamente por instâncias maiores, foi no dia de São Cosme e Damião, quando lá no quintal do Seu Dai a molecada viu o velho preto matar a galinha. O sofá ficou ao relento por duas semanas. A imagem da galinha retorcida, os olhos vazios, o sangue sulcando o chão empoeirado, as gotas demarcando aquele tempo imensurável e o galinheiro cheio de bicos e penas, tomado por revolta. Viveram em silêncio por uns tempos, fuzilados pela lembrança. Pouco a pouco foram voltando ao ponto de encontro, primeiro a criançada da rua de cima, depois a da rua de baixo. O teor das conversas alterou-se e o ambiente foi contagiado por uma sobriedade súbita, inesperada para tão nova idade. Depois do primeiro baque, houve outros, naturalmente, embora de ordem menos metafísica. Separações dos pais, adoecimento de algumas avós e, para as meninas, a primeira menstruação. E quando dos quinze anos do mais velho da turma, o quarteirão sofreu um novo atentado. De manhã, ao acordar, os irmãos da casa quatro saíram à rua para comprar pão na padaria. Na esquina, avistaram uma roda de alguns poucos transeuntes e, no centro, um corpo. Era Dália, impúbere ainda, todo o peso caído, atarracada ao chão. Por detrás do emaranhado de cachos, uns filetes ramificados rubros já incrustados no asfalto , desenhando por cima das marcas de pneu e, ao invés de penas dispersas, contas do seu colar ladrilhando o chão, que os meninos imediatamente puseram-se a catar.

Filigranas

Dormi sonos contidos nas costas de um chão desolado. Manchas de chuva e tempo e café. Quanto café derramado pelos dedos trêmulos. Mas agora as cortinas estão abertas, o mundo é uma coisa só, escancarada. É esse amor amadurecido de mulher, é ser mulher – a estrutura óssea é a mesma, os pulmões imperceptivelmente mais cansados. O jogo, porém, é outro. É o jogo de quem já se jogou, todo o momentum soçobrando o corpo, em voluta, convergindo para um milpontos de espaços quiméricos. Insisto em não dizer não.

Passeio

Desci os dois lances de escada que me levavam até a rua. São Paulo de manhã é um inferno. Me contorci por entre os carros parados para atravessar a rua; aprendi uns 5 xingamentos diferentes no processo. Passei de baixo da janela da chérie, tudo fechado – a vida de filhinha de papai era bem diferente. Suspeito que ela freqüentava o curso noturno só para poder dormir até depois do almoço. A chérie era linda. Mulher mesmo. Daquelas que te fazem encolher diante da presença delas. Desbocada, gênia da sinuca e boa de copo. Nunca vi chérie sequer cambalear. Perder a compostura jamais. Era muito cedo, porém, para adentrar o mundo platônico. Às vezes, quando eu me pegava pensando nela, era meio dia e eu já tinha ido e voltado na mesma linha de metrô três vezes. Mas não hoje. Hoje eu tinha aquela entrevista de emprego. Ia poder parar de servir cafezinho para os ternos e tailleurs e me sentir útil no mundo. Meu sonho sempre tinha sido o de trabalhar numa livraria – esse grande clichê de todo pretenso escritor. Só que agora estava tudo muito chato. Imagino os camisas chegando e pedindo “aqueles livros grandes, pra por na mesa, de enfeite” ou as batas-morcego indagando sobre “aquele livro lá, que está no 1º lugar dos mais vendidos”. A propósito, li um artigo sobre isso outro dia no ônibus, indo para a faculdade. Sobre como o país regrediu literariamente. No ano de 81, estavam entre os mais vendidos: Cortázar, Proust e T.S Eliot. E agora essa carnavalização geral da leitura. O autor dizia que o povo tinha emburrecido; eu, sei lá, acho que mais gente aprendeu a ler. Mas as duas coisas podem ter andado juntas. Esse é o grande problema de ter superado a seleção natural, o número de pessoas burras no mundo não está diminuindo. E foi numa dessas que eu estava tendo dificuldades para descer do metrô. Porque tinha um senhor com uma enorme mala obstruindo a saída. Saí do trem com o cigarro já na boca, a mão no bolso procurando o fósforo. Acendi ali mesmo; lá em cima, com o vento, ia demorar muito e, além disso, aquele senhor tinha me deixado com o humor variado. Era só ter virado a mala na perpendicular, porra. Pisei na bituca, apaguei a brasa e segui pela rua estreita. Os guardadores de carro estavam jogando uma partida de dominó. Acho jogar dominó incrivelmente estiloso e viril. Me enchia de orgulho quando, pequeno, via meu avô jogar. Eu mesmo nunca tive paciência pra essas coisas. O boteco me criou de um jeito meio torto. Mas família é família e os laços são fortes – aprendi a nunca recusar uma cerveja. E foi por isso que quando o Carlão me gritou do outro lado da rua, já sentado na cadeira de alumínio, inaugurando o dia com uma Brahma geladinha, não pude recusar. Carlão era um cara da história, figuraça. Bebia demais, é verdade, mas era boa companhia. E declamava poemas como ninguém. Me dava arrepios ouvir Momento num Café ecoar do seu rosto inchado. Carlão conseguia recriar o espírito todo daquele tempo, aquele Zeitgeist, sem nunca nem ter lido sobre a época. Vai ver que para declamar Bandeira direito, bastava ser autenticamente boêmio e ter a voz meio rouca. Sentei-me à mesa, pedimos outro copo e um cinzeiro. Discutimos futebol, política e o novo filme do Gus Van Sant. “Acho que esse filme dele vai ser meio diferente. Desses que vão passar na Globo, bem tarde, e, ainda assim, com cortes. E dublado. Como é que você acha que faz pra ser dublador? É uma coisa que me interessaria”, aí ele acendeu o Derby dele e veio aquele cheirão que só pode ser de pólvora do Paraguai. Eu disse que não sabia, mas que esse filme is ser mais mainstream mesmo. “Mainstream?” “É…o contrário de underground…” “Porra, cara, mas aí você me fode com esse seu inglês.” E a gente deu risada. O Carlão começou a me contar a sua mais nova teoria de conspiração que envolvia o Sendero Luminoso, os Tigres Tâmeis e o Fatah – todos juntos. Lá pela quarta cerveja, estacionou um carro na frente do boteco. O cara saiu, deixou o rádio ligado e a janela aberta. Depois da propaganda da universidade tal e da operadora de celular xis, fui informado das horas. Onze e quarenta. “Fodeu!” “O que foi?” “Nada, cara, é que São Paulo de manhã é um inferno mesmo.” A entrevista do emprego já perdida, pensei que podia ficar ali mais um pouco, pegar um filme e depois passar lá na casa da chérie e perguntar se ela queria companhia até a faculdade. Quem sabe hoje eu não ganhava um beijo?

Andaraí

Filhota,

Transcrever o que vi é de certa forma desvirtuar o que senti enquanto o via. Teço meus pensamentos no alto do morro, naquela pedra levemente deslocada que paira no ar. A vertigem me prova a vida a todo instante e não é porque enlouqueço, filha, que não posso dizer verdades. Fujo do ar da cidade viciado e as sombras, na mata seca, são espectros daquilo que não tivemos enquanto gente. Por aqui, os abismos me confrontam o dia inteiro em terremotos que vêm vindo lá de onde não existe mais tempo. No fim de tarde, os horizontes se pronunciam em pedra talhada e aguardam o corpo em queda. É assim que se deve morrer. As altitudes me atormentam durante o sonho; não sei mais andar com o pé no chão. Não sei mais voltar para casa. Não sei mais voltar para onde o amor me escancara a alma em páginas de jornal. [Cuidado ao namorar escritores, pequena… ficção e vida se tornam a mesma coisa.] Vivo agora no mundo do amor grande, transcendente, sem nome. É o amor pela solidão, por subir e descer sempre a mesma margem do rio; um amor que sorri banguela. Em noite de lua nova, desbravo a penumbra e ela me afaga os medos. A noite é um grande buraco – não tem para onde cair nem pular.  E vou caminhando, tateando. Às vezes acho umas notícias do mundo por aí. Penso em escrever. E percebo que não sou nenhum contador de histórias. Mas também… não tem como: só sei falar a verdade desde que vi o que é a chuva no sertão.

Crateras

Não consigo me esquecer ao certo. Foram a mesa, os pratos, o garfo torto e a taça lascada. Uma casa sem fotos recordadas. Todas retiradas. As janelas sujas e uma mesa de jantar arruinada. Me vejo na minha avó. Cada ruga, uma linha a ser seguida. E os olhos – só sabem espreitar. Algumas nuvens. Vem o vento e chama as outras. Às vezes choves. Às vezes não. A cadeira rústica, algumas farpas nas mãos. A casa de boneca com uma mãe desaparecida. Desconfio da vizinha. Vamos brincar na chuva! Era o pequeno: cabelo caracol, ar de nobreza e dois globos verdes. Voa lama, sobe grama e as marcas do pezinho na ardósia. Corro. O carro velho parado, essa imagem de avô. E o cheiro. Cheiro de quandocriança. E se eu não quiser ir? Passa dia, desce sol e à noite as cigarras. Quantos cortes cinematográficos, não sei nem mais escrever. Saudades de voltar para a casa fechada depois de longas férias. Descobrir todos os cantos de novo. Antes eu deitava na cama, quase dormindo, a pia do banheiro pingando e o poema virava desenho e desvirava tudo de novo. No final era sempre uma carta pra mim mesma, essa coisa de se entregar. E agora essa coisa de não querer finais, de ter medo de achar finais. No fim, termina de repente e abrem-se as janelas rápido. É dia, deixa a luz entrar e o quarto ventilar. Fecha olho, pisca, afunda a cara no travesseiro, respira. A barriga contrai pro lado. Friozinho. Se ninguém entender, se ninguém vier e se a casa não existir? E quando você, não me querendo, não deixar a chave virar? Testa no vidro, meu cabelo vai soltar, dezenas de cachos explodindo e os meus olhos apertados, apontando para o chão. Vou te lembrar o que você disse no chão da sala, janela entreaberta e latinhas de cerveja pelo piso. As madeiras desencaixadas e o dia resignado. Como é que faz pra ficar pra sempre? Tem que morrer junto? Dois pés de manga, duas cordas e um nascimento. Antes de dormir, fico pensando demais.

Quintal

Rasgavam as nuvens o dia inteiro, quando, naquele invólucro conquistado, um rádio falava sozinho como uma avó perdida nos círculos do tempo. Um quintal. Um menino no seu quintal. Quintal circundado e intransponível por todos os lados; ilhado, murado e cercado. Quintal insípido, inorgânico. Nem os gatos ariscos se arriscavam por lá. O menino mais sozinho de todos os quintais intransponíveis do universo – esta certeza pesava sobre os seus ombros miúdos.

Entrou em casa; um gole de café, duas mordidas de torrada e um beliscão na irmã. Saiu porta afora. Vida tonta esta de ir pro colégio. Rua após rua olhou as esquinas, examinou as baixadas e se esgueirou para achar uma ocupação qualquer. Nada. Chegou no colégio. Ninguém sorria ou oferecia a esperança de um dia feliz. Nem se deu ao trabalho de entrar. Foi lá na mercearia enfiar as mãos nos sacos de feijão e lentilha e sentir o tempo passar. No auge dos seus treze anos chegou a uma decisão: precisava se casar. Não haveria remédio melhor para a sua solidão. Uma menina singela, bem humorada para dar vida ao seu quintal.

Desceu as escadarias até a praia. Sabia da não-existência das sereias, mas fascinado por elas, procurou algo parecido. E então a viu. Uma menina no mar brincando de jacaré, disparando como seta em sua direção. Ele, admirador tímido, se surpreendeu quando de dentro de si saiu uma voz viril e confiante:

– Oi! Quer ir lá em casa brincar?

E como se a resposta afirmativa dela fosse a confirmação matrimonial de uma união perpétua, guiou sua esposa até o seu quintal.

– Que triste o seu quintal! Vamos trazer flores, bonecas, o mundo!

Nunca fora o quintal tão aprazível. Até avistou-se um gato, meio desconfiado, se equilibrando pela distância do muro para dali sumir no meio dos galhos da figueira do vizinho. O rádio também trocara do seu falatório para uma música diferente. E assim foram criando um novo reino ali, onde antes não havia nada, até que o sol começou a se despedir.

– Preciso ir. Minha mãe me deixa sem jantar se chego depois de escurecer.

Tornou-se o desquitado mais jovem de todos os desquitados do mundo. Viu sua ex-esposa, rainha e sereia atravessando as ruas para retornar ao seu próprio quintal onde certamente seus belos súditos a aguardavam. Pensou em ir ao boteco da esquina, onde ficavam todos os homens divorciados do bairro, mas ao invés disso caiu de cama com uma febre altíssima. E enquanto sua mãe batia no vizinho para pedir-lhe algumas folhas de pitanga para fazer um chá antipirético, viu da janela de seu quarto, na sombra do poste de rua, a imagem da sua menina.

– Amanhã eu volto.

Se foi por ironia do Destino ou um ato de crueldade involuntário do moço da companhia de luz, não se sabe ao certo. Mas o fato que se concretizou foi um apagão geral no quarteirão. Sua sereia sumiu e nunca mais foi vista. E o seu reino sucumbiu novamente ao tédio insosso de um quintal infeliz.

Zepelim

A um certo anjo torto

Agora eu é que sou essa Tangerine Girl, esperando os presentes caírem do céu. Te espero. Te lamento. E ando pela rua com o peso de quem deixou tudo azedar.

Conheço bem o rejunte do piso desse banheiro. Conheço bem a louça branca e a água que acalma a face. Um corpo colonizado pelo verbo. É necessário repor no corpo aquilo que foi destituído pela palavra. A aparição única de algo distante.

O piso é frio e não oferece mistérios.

O desenho da sua mão não cabe na minha mão profanada e viciada. Vez ou outra penso em levá-la, amarga, ao seu rosto. E, ao fim, só consigo levá-la ao papel e te descrever esse meu fardo indivisível.

Me desato inteira.

Esse símbolo no seu corpo, entalhado na porta de uma cidade velha, evoca a alvura das peles esquecidas.

Nessa caixa estão algumas roupas suas, alguns livros e aquela revista. Tome-a. Queria que alguém me explicasse para quem devolvo todos os planos feitos. Como é que se devolve o futuro?

À noite, as luzes se acendem. Sobe, frio! A penumbra só faz ventar. Ao longe, vozes boêmias e um samba entorpecente. Meus olhos não fecham, mas eles querem desabar. Cinqüenta páginas lidas e nenhuma informação retida. O relógio debocha.

É só tirar a pilha e esperar o dia amanhecer. Sair de novo ao quintal e ver o que mais despenca do céu.